A I N A L C
  Associação de Investigadores/as Afrolatinoamericanos/as e do Caribe
   Ingresar 
BITÁCULA  AFRODIASPÓRICA Transitando os temas da diáspora africana na América Latina e no Caribe.

Marcos de Jesus Oliveira

Marcos de Jesus Oliveiraé Professor-Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pela Universidade de Brasília. Possui Licenciatura em Letras e mestrado em Literatura e Práticas Sociais, pela Universidade de Brasília. Também é licenciado em Sociologia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Realizou pós-doutorado no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. É membro da AINALC.


Úrsula:
A literatura negro-brasileira como literatura menor
por Marcos de Jesus Oliveira

     ENgũgĩ wa Thiong’o (1986) diz que o imperialismo é total, afirmação que opera um corte em relação ao paradigma segundo o qual o imperialismo se expressa puramente no plano da dominação econômico-política. Para o escritor queniano, o imperialismo também implica dominação cultural e psicológica sem a qual a dominação econômico-política seria impossível. A dominação psicológica se faz, principalmente, pelo uso social da linguagem que serve de correia de transmissão dos valores da cultura hegemonicamente imposta, colonizando mentes e subjetividades segundo os interesses e finalidades do império.

     A despeito da força da dominação imperial, o sujeito subalternizado não é um mero reprodutor de suas estruturas, sem agência ou subjetividade. O sujeito subalterno toma posição em relação à linguagem da cultura metropolitana, conforme escreve Frantz Fanon (2008). Ou, para dizê-lo de outra forma, a posição tomada pelo sujeito subalternizado frente a linguagem e cultura metropolitanas pode ser tanto a de reforçar as estruturas opressoras como também a de questioná-las, produzindo resistência em relação ao padrão imperial. É essa segunda possibilidade que se apresenta em Úrsula de Maria Firmana dos Reis (1822-1917), considerado o primeiro romance abolicionista escrito por uma mulher negra no Brasil.

     Originalmente publicado em 1869, Úrsula é identificado por muitos críticos como parte da literatura negro-brasileira ou afro-brasileira, e se desenvolve às margens da chamada “grande literatura”, da literatura canonicamente estabelecida. É isso que torna possível aproximar sua produção literária à ideia de “literatura menor” de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2003). O maior representa as formas hegemônicas impostas pelos dominadores e por aqueles que reforçam a dominação, ao passo que o menor supõe a transgressão em relação às normas culturais hegemonizadas. O menor é que é revolucionário, portanto.

      Ainda hoje a literatura no Brasil é majoritariamente escrita por homens brancos cujo acesso facilitado aos meios materiais de produção os colocam em melhores condições para fazer circular suas produções. A literatura brasileira é branco-falogocêntrica não apenas porque escrita por homens brancos, mas também porque os personagens são majoritariamente brancos e expressam suas vivências e subjetividade ainda que reivindiquem para si universalidade e a-historicidade.

     Os inúmeros textos literários de Maria Firmina dos Reis tensionam a imagem branco-falogocêntrica da literatura brasileira não apenas por sua presença como escritora e educadora negra numa época em que o acesso de pessoas negras à alfabetização era algo bastante restrito, mas também pela presença de personagens negros humanizados em seus escritos. Sob sua pena, a literatura se torna um espaço para a experimentação estética, para o exercício contingente de descolonização da mente e da linguagem. A transgressão estética operada pela autora maranhense em relação às noções de identidade e de cultura nacional, tão correntes no imaginário literário da época, é um dos pontos altos do romance

     Úrsula foi produzido no contexto dos valores estéticos do romantismo do século 19 e retrata a história de amor entre a personagem que dá nome ao romance e Tancredo, jovens brancos, cujo desfecho amoroso trágico é o ingrediente comum às narrativas da época. A despeito da centralidade dos dois jovens na narrativa e de suas famílias, os personagens negros também se destacam. Entre tais personagens, está Túlio cuja fala abaixo expressa a complexidade de sua psicologia:

     Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte estampado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse: “És meu”, ele curvou a fronte, e humilde, e rastejando qual erva, que se calcou aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos. Cadeia infame e rigorosa, a que chamam: ― escravidão?!... E, entretanto, este também era livre, livre como pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. Ele escuta a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos lábios de sua mãe, e sente como eles, que é livre; porque a razão lhe diz, e a alma o compreende. Ó! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar. Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da África, vê os areais sem fim da pátria e procura abrigar-se debaixo daquelas árvores sombrias do oásis, quando o sol requeima e o vento sopra quente e abrasador: vê a tamareira benéfica junto à fonte, que lhe amacia a garganta ressequida: vê a cabana onde nascera, e onde livre vivera! Desperta, porém, em breve dessa doce ilusão, ou antes sonho em que se engolfara, e a realidade opressora lhe aparece ― é escravo e escravo em terra estranha! Fogem-lhe os areais ardentes, as sombras projetadas pelas árvores, o oásis no deserto, a fonte e a tamareira ― foge a tranquilidade da choupana, foge a doce ilusão de um momento, como ilha movediça; porque a alma está encerrada nas prisões do corpo! Ela chama-o para a realidade, chorando, e o seu choro, só Deus compreende! Ela, não se pode dobrar, nem lhe pesam as cadeias da escravidão; porque é sempre livre, mas o corpo geme, e ela sofre, e chora; porque está ligada a ele na vida por laços estreitos e misteriosos. (REIS, 2018, p. 66-7)

     Túlio é um personagem marcado pela densidade de suas reflexões sobre a escravidão, sobre a liberdade e sobre o ser. Esse é um ponto fundamental do romance porque tensiona uma longa história reiteradamente repetida que afirma que o sujeito subalternizado é incapaz de produção de pensamento crítico em relação a sua situação. Conforme explica Túlio, pode-se conseguir, mediante a ameaça física, fazer o corpo do escravo se curvar, mas não é possível obrigá-lo a concordar com o ato de deferência.

     O estereótipo do escravo que aceita passivamente a escravidão é um d0s artifícios do poder colonial para justificar sua suposta superioridade epistêmica. Ao longo da narrativa, a descrição da subjetividade de Túlio em suas diversas nuances aparece como estratégia para deslocar as compreensões correntes sobre o negro. Túlio é um sujeito que se posiciona em relação à cultura racista e em relação às normas que o querem inferior e escravizado. Sua subjetividade é retratada como um espaço para o exercício da liberdade, um lugar do embate contra a ordem desumanizadora da escravidão.

      Diferentemente dos personagens brancos, os personagens negros tendem a não apresentar suas questões como meramente individuais ou privadas, no sentido pequeno-burguês do termo. O posicionamento de Túlio, por exemplo, é apresentado como um problema político, na medida em que sua subjetividade vocaliza os dramas vivenciados pela comunidade negra escravizada no Brasil da época. Não se trata de dizer que o negro não possa ter uma individualidade ou de vê-lo apenas como um sujeito coletivo, mas de fazer ver que tal individualidade só é possível se determinadas condições materiais e concretas estiverem asseguradas.

     Parafraseando Sojourner Truth (2020), poderíamos dizer que a fase que sintetiza a indagação por trás das diversas falas de Túlio é: “E eu não sou um ser humano? ”. Essa indagação também parece ser a que perpassa outra personagem negra, mãe Suzana: “Liberdade! Liberdade… Ah! Eu gozei na minha mocidade! […] Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo, até a própria liberdade! ” (REIS, 2018, p. 121-2). Mãe Suzana expressa sua consciência em relação ao gozo da liberdade no continente africano antes de sua vinda forçada para o Brasil num gesto de afirmação de sua autodeterminação e de sua capacidade de resistência.

     A tensão entre o individual e o coletivo é, sem dúvidas, uma das características mais marcantes da literatura menor da qual a narrativa de Maria Firmina dos Reis não escapa. E talvez não escape justamente porque foi publicada no auge das teorias racistas, dezesseis anos depois do famoso “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” de conde Arthur de Gobineau. O romance, a obra e a vida de Maria Firmana dos Reis seguem sendo um convite à reflexão sobre o papel da literatura na descolonização da mente e da linguagem numa perspectiva coletiva e plural, com elementos bastante preciosos para se pensar a cultura na produção da resistência e da transformação social.

     Referências bibliográficas:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2018.
SOJOURNER, Truth. E eu não sou uma mulher? A narrativa de Soujourner Truth contada a Olive Gilbert. Rio de Janeiro: Livros de Criação : Imã Editorial : Coleção Meia Azul, 2020.
THIONG’O, Ngũgĩ wa. Decolonizing the mind: the politics of language in African literature. Portsmouth, NH: Heinemann, 1 986.


 

Bitácula Afrodiaspórica